Esse homem acha que todo dia faço tudo sempre igual. Não tenho direito de ficar nem mais um minuto na cama. Tenho que me levantar às seis da manhã. Ele não levanta. Dissimulo um sorriso. Vou no banheiro e volto para beijá-lo. Quero um carinho. Nada. Ele reclama do meu gosto de hortelã. Azedo, como … Continue lendo Cotidiano
cotidiano
Limites
Até onde um portador de esquizofrenia pode chegar? Essa dúvida me acompanha há anos, talvez há mais de uma década, desde que comecei a desenvolver consciência sobre a doença que definiu o destino do meu irmão antes mesmo dele aprender a escolher por conta própria. A consciência, aliás, assim como a maturidade, não é algo … Continue lendo Limites
A obsolescência do amor
Entraram no quarto, um pouco constrangidos pela súbita intimidade depois de tanto tempo. Havia o desejo e uma interrogação: o que estava para acontecer os levaria para onde. Por cautela, permaneceram em seus mundos particulares. Ela começou sondando o quarto; ele pôs o celular no mudo. Cada um deixou para fora daquele quarto suas catequeses. … Continue lendo A obsolescência do amor
Barcos de papel
Primeiro o ar fresco da manhã, o cheiro de grama, o orvalho evaporando, nuvens se dissipando lentas, transformando o céu nublado num outro céu, azul. Prenúncio de um dia bom. Respiro fundo o aroma de mil folhas se espreguiçando. As crianças aparecem de pijamas na sala, sonolentas. A sua volta todos os sonhos da noite, … Continue lendo Barcos de papel
Bem feito
Avança a mulher na rua deserta. Um passo, um suspiro, uma tosse. A trouxa de roupa na cabeça, o pescoço retesado, balançando as cadeiras por conta do pisar incerto no calçamento. Desce a rua de trás da igreja, espalhando cheiro de roupa limpa, sabão e sol quente. Com o dorso da mão livre, seca o … Continue lendo Bem feito
Pensorragia
Fica só de calcinha, o resto tira tudo e guarda ali no 21. Tem piercing, tatuagem? Deita de bruços, braços esticados para cima. Só meia hora, se ficar quietinha. Senão vai mais. Pode formigar um pouco, qualquer coisa aperta aqui. Só mais um pouco pra cima, aí! Não mexe, hein? Agora vai. Boa sorte. Ok, sou forte, … Continue lendo Pensorragia
De abismos e pontes
Colocou as batatas para cozinhar, mas antes, para achar a panela ideal, derrubou todas no chão, fazendo um estardalhaço metálico que despertou a família inteira.A palavra de ordem de Marta sempre foi: “fazer”. Enquanto as batatas cozinhavam, foi até o quintal e colheu salsinha, manjericão e tomilho. Pegou a tábua, picou tudo e deixou separado … Continue lendo De abismos e pontes
Dia útil
Viro a cabeça a tempo de ver o motoqueiro ser arremessado uns 3 metros para o alto e para frente, aterrissando na sarjeta paralela à minha calçada. Jesus, é só terça-feira e o dia já começa assim.
Passo a passo
O auditório estava lotado. No palco, os preparativos pareciam não ter fim. Na plateia, uma mãe apertava a bolsa contra o peito. Alguém tentava lembrar-lhe dos ensaios e de quanto seria imprescindível para o sucesso da apresentação sua confiança na capacidade da filha. Ela tinha apenas vontade de chorar. Era sempre assim. Deixou a bolsa … Continue lendo Passo a passo