O envelhecimento dos cães

Sempre tivemos cachorros em casa, desde que me entendo por gente. Superstição, companhia, medo incessante de assalto mais a crença de meu pai na proteção canina ao lar como super-heróis, filtro de espíritos malignos. Foram vários os motivos sem sentido para isso, mas me acostumei a acordar com latidos.

Há pouco mais de sete anos, Gabriela e Hector são os motivos para a gente acordar mais cedo do que queríamos nos dias de folga, com latidos irritantes quando alguém toca a campainha ou outro cachorro folgado passa no portão de casa emitindo desaforos numa língua que só os animais domésticos entendem.

Ela quebrou a tradição familiar e fez minha mãe escolher um típico nome humano para uma cachorra. Ele segue o costume de nomes gregos, como os de seus avós, que também passaram por aqui. Ela é uma vira-lata magrinha, foi abandonada pelos antigos donos. Ele um dogue alemão branco com um olho de cada cor, em pé é mais alto do que eu. Ela grita como uma perua histérica toda vez que chego. Ele tem muita preguiça e é manso com os mais próximos.

Ambos estão ficando cegos e mais próximos de chegar à curva da morte, pouco depois da esquina dos problemas de saúde, carregados com esforço conforme a idade avança.

E se eles sequer vão saber desta crônica sobre seu passar dos anos e cair dos pelos, tampouco têm noção que seus dias sobre essa casa, com ração e água grátis, passeios pelo gramado vizinho às estações do VLT e banhos seguidos de enfeites que lhes envaidecem na clínica veterinária ao lado do mercado sempre cheio, estão com os dias contados. Ainda que ninguém saiba fechar essa equação para saber quando eles terminam – seja para os humanos ou para os animais que latem ou miam e amamos.

Já é comum vê-los dando cabeçadas involuntárias nas paredes, no carro ou em nossas pernas nos momentos em que chegamos e eles festejam à canina. Mesmo sem ler ou ver televisão, a cegueira já manda cartões de visita.

Semana passada, lavava o quintal com minha mãe e o Hector escorregou, sem conseguir levantar. Ontem, foi a vez dele derrubar uma escada nos pés do pai, que se esforçava para pegar Caleb da alta sacada do vizinho que não atendia a porta – pois se nos acostumamos com cães desde sempre, nos últimos quatro ou cinco anos passei a ouvir miados de um bichano preto que se engalfinha com a Gabriela vez ou outra.

Estranho pensar nisso tudo: possuímos animais como quem tem objetos de estimação, comprando-os e vendendo-os como uma mercadoria qualquer numa lógica capitalista e depois reivindicando melhor tratamento aos bichinhos nos vídeos fofos de Facebook – os nossos foram adotados; os bichinhos fofos de vídeos compartilhados na internet não sabem que vão morrer, não sabem que vamos morrer, não entendem o envelhecer; eu entendo o envelhecer (deles, meu, dos meus pais, do mundo) e tento não lamentar isso por entender como parte da vida e de seu aprendizado constante.

E toda vez que vejo o Hector e a Gabriela olhando cegamente para mim, passo as mãos sobre suas cabeças e nem me preocupo com o cheiro que fica depois. Acho que poderia ter aproveitado melhor os cachorros que passaram pela minha casa e por vezes ignorei os olhares de adoração deles por nós. Até evito falar sobre sua saúde e só aproveito a festa que fazem quando chego de madrugada em casa com álcool no corpo.

Talvez a gente vivesse melhor se ignorasse o envelhecimento, como os cães. Assim, nosso amor seria tão incondicional quanto o deles. Hector e Gabriela enxergam com mais clareza que nós, humanos. Mesmo tropeçando nas paredes, no carro e nas nossas pernas.

minibio

2 comentários sobre “O envelhecimento dos cães

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