Aqui jaz

Era uma tarde de sol e Beatriz brincava com as outras crianças da rua quando viu a figura séria da mãe chamando-a do portão. “Mas eu não fiz nada, mãe, eu juro!”, gritou Bia de uma distância segura o bastante caso a mãe lhe arremessasse um chinelo. “Chama sua irmã na casa da vizinha e entrem já as duas. Vamos sair”.

Talvez fosse melhor receber a chinelada. Para onde iríamos numa sexta à tarde? A escola já acabou por hoje e não é dia de missa. Por que mamãe estava tão séria? Será que ela descobriu a briga que eu e Dorinha tivemos no recreio e decidiu cumprir as ameaças de nos deixar num orfanato? Se for isso, eu só espero que eles não nos obriguem a comer bife de fígado toda semana. E que deixem a vovó nos visitar de vez em quando.

As indagações foram suficientes para que Bia, que nada disse à irmã mais nova, entrasse temerosa em casa, preparando-se mentalmente para implorar por sua permanência com a família. Na sala, o ar lúgubre da mãe era agravado pelo vestido preto acinturado que vestia. Por um momento, Bia pensou ser seu fim. Nada poderia prepará-la para o que ouviu em seguida:

“Vão já se vestir. Vô Joaquim faleceu, precisamos chegar logo no velório. Suas roupas já estão separadas”

Vô Joaquim. Na verdade, bisavô. Velho ruim, parecia um fantasma mesmo quando ainda estava vivo e acamado na casa de tia Maria. Quem o via deitado na cama, enrugado e cadavérico, com a pele manchada de velhice e os olhos azuis já meio esbranquiçados por catarata, pensaria se tratar de um pobre idoso que teve uma vida sofrida. Ninguém jamais desconfiaria que ali estava um homem com um passado escravocrata, que enterrou quatro esposas (incluindo uma índia que caçou no laço), afastou de medo os vários filhos que teve e gastou toda sua considerável fortuna em cachaça. Com mais de 80 anos, vô Joaquim estava bem longe de ser um coitado.

Visitá-lo era sempre uma tortura para Bia e Dorinha. Começava com o cheiro de doença que impregnava as narinas assim que abriam a porta do quarto. Em seguida, os olhos nebulosos se encolhiam em direção às meninas e, em resposta a um breve “oi, vô Joaquim”, vinha uma tosse catarrenta e um cuspe no balde adjacente à cama. Quando entravam sozinhas, ficavam distantes do leito, em silêncio, esperando que sua presença fosse esquecida até a hora de partir. Mas quando algum adulto estava por perto, eram forçadas a se aproximar e aí, além de estarem perto do balde de baba e da criatura maligna que produzia todo aquele escarro. Também estavam dentro do alcance da varinha de bambu que ele usava para afastá-las, cortando o ar na direção delas como provavelmente fizera com o chicote que usava em seus escravos. A única coisa que as protegia de um golpe dolorido era a fraqueza e falta de coordenação daquele malfeitor.

Não mais! O vô Joaquim, aquele demônio em pele de senhor indefeso, bateu a cacholeta.

A alegria de Beatriz logo deu lugar à apreensão de ter que ir ao cemitério pela primeira vez. Será que veria mortos-vivos e fantasmas? A mãe disse que eram só túmulos e que ela não precisaria ver o caixão se estivesse com medo, mas era impossível não especular sobre o que encontraria lá.

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Um ônibus e quarenta minutos depois, descobriu um portão que dava para um gramado cheio de pequenas construções espaçadas, estátuas de pedras diversas e algumas com flores. Tudo muito inofensivo e nada de vô Joaquim. Nada mesmo.

“Onde ficam os velórios” a mãe pergunta pra um sujeito que vendia flores na entrada. “Segue reto, vira ali na cruz de mármore e logo a senhora vê”. Fácil. Exceto pela quantidade de cruzes de mármore. Três curvas erradas depois, Bia e sua pequena comitiva finalmente chegaram a seu destino.

No velório, poucos familiares ao redor do caixão simples. O pai e o tio também chegavam, vindos direto do trabalho. Encorajada pela presença de tantas pessoas queridas a assegurar que a vareta e a escarradeira haviam sido deixadas em casa, Bia se aproxima para despedir-se de seu ancestral.

Mantendo o rosto sério e uma distância segura da caixa de madeira, a menina inclina-se para ver a mesma cara ruim de sempre, agora um pouco mais pálida e coberta por um véu. “Sabia que esse salafrário não tava morto de verdade” pensou, usando o xingamento favorito do dono da mercearia. Ela precisava de mais evidências antes de se sentir livre do encosto. Resolveu testar.

“Pai, por que tem algodão no nariz dele?”

“Porque ele não respira mais.”

“Mas ele parece vivo.”

“Se ele estivesse vivo, você acha que ele ficaria quieto nesse caixão? Ah menina, deixe de bobagem!”

Isso era verdade. Ruim como era, o velho cuspidor só sossegaria mesmo depois de morto. A menos que…

Logo a alegria de se ver livre das visitas dominicais ao bisavô deu lugar ao medo de que tudo não passasse de um plano maligno do suposto falecido para aprisioná-las ali. Decidida a fugir daquele lugar o quanto antes,  Bia aproveitou a carona e hospitalidade de uma vizinha e, junto da irmã, apressou-se a fugir com sua nova acompanhante.

Mas Dona Eulália, que mancava por conta da artrite, ia devagar demais e logo a luz do crepúsculo desapareceria, deixando-as perdidas na escuridão. Dispostas a encontrar rapidamente o caminho da saída, as meninas se adiantaram entre mausoléus em busca de uma porta. De repente, um grito alto e Dorinha quase voa em direção à vizinha claudicante.

“UM MONSTRO, UM MONSTRO!” gritava a caçula.

“Medrosa!” disse Bia enquanto girava nos calcanhares para ver a razão do escândalo. Num túmulo aberto perto dali, largada sobre um pedaço de lona, havia algo que parecia ser uma múmia de terno. Ossos e pedaços de carne apodrecida cobrindo as partes que o traje não ocultava. No rosto, um sorriso escancarado com um canino faltando e, nos olhos, dois buracos escuros. Coroando o horror, tufos irregulares de cabelo branco cobertos de poeira espalhavam-se pelo crânio tombado. “Não vou gritar, ele nem tá vivo”. Vozes. De repente, outra carcaça emerge quase voando pela porta do mausoléu, com um terno igual ao que Vô Joaquim usava há pouco.

“SOCORRO, VAMOS MORRER AQUI!” berra a mais velha, à beira do colapso e sem reparar que a saída estava a menos de dez metros dali.

“Vamos meninas, só estão desenterrando para abrir espaço” diz a calma Dona Eulália, quase rindo do desespero das meninas. Saem do cemitério quando o último raio de sol desaparece no horizonte. Aliviada pela própria sobrevivência, Bia, que nunca gostou de comparecer à missa, jurou ir todos os domingos pedir orações em nome do Vô Joaquim. Uma linda tentativa de honrar o falecido que, assim como o vínculo que os unia, durou até a primeira pá de terra atingir o caixão.

No fim, a infância tinha outras prioridades.

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