A nave penetrará entre o planeta e seus anéis para acabar desintegrada na atmosfera do gigante gasoso. Em frente ao computador, Afonso retirou os óculos, apoiou a cabeça nas mãos, fechou os olhos, estava esgotado. Sentia-se como a minúscula sonda Cassini comparada ao extenso Planeta Saturno. A camisa polo colava no corpo por causa do suor. O equipamento, que por vinte anos ajudou cientistas a desvendar tantos mistérios, está condenado ao próprio fim. Algum dia foi notável, naquele momento não passava de algo desimportante, a palavra que o acometeu. Olhou o crachá: Afonso G. Huygens – Cadastro n.843. Limpou o suor da testa com a mão trêmula. Demitido.
Pensava que seria o suficiente atender aos requisitos corporativos. Uma vida dedicada, uma sonda programada para ser workaholic.
“Sou um idiota.”
Pegou uma caixa no almoxarifado a fim de transportar seus pertences guardados naquele espaço desde 15/10/1997. Decorou a data não por boa memória, mas porque fez dela sua senha.
“Crise, agora essa é a porra da desculpa para tudo”, praguejava e rasgava alguns papéis. “Sei que a culpa é mesmo do Cardoso” – o novo supervisor configurava-se em seus pensamentos como a desculpa verdadeira para sua atual situação. Não ia com sua cara, supunha.
“Quarenta e um anos, desempregado, putz! O que vou falar para a Mari? E para o garoto?! E o apartamento, como ficarão as prestações? Vida burguesa de merda! Cardoso filho da puta!” Transpirava mais do que o habitual.
Os minutos anteriores voltavam insistentes no pensamento. O gerente o chamou numa sala de reunião, fez elogios programados e o dispensou com o advérbio trivial, “Infelizmente blá-blá-blá”. Em seguida sai de cena o gerente, entra o analista do RH com outro discurso contextualizado, “Inovamos com alguns benefícios para seu recomeço blá-blá-blá”. Para tirar as dúvidas foi pragmático: “Perco a carência do plano de saúde? E demora essa liberação do FGTS? Até quando teremos o desconto na mensalidade do colégio de meu filho?” Olhou os papéis que assinava: “De uma hora para outra tenho tempo até para jogar bilhar a tarde com os aposentados da Vila Quinze”, amargurou.
Em sua nova ex-sala sem janelas, Afonso encheu a caixa sob o olhar do supervi
sor e o não-olhar dos colegas. “Caralho, preciso passar pelos rituais de despedida?” Um e-mail breve, pressionando cada letra com muita força.
Caros,
Agradeço os quase vinte anos de convivência e aprendizado.
Partindo para novos desafios.
A.Huygens
“E-mail estúpido.”
Desligou o computador. Os colegas aproximaram-se, o supervisor afastou-se. Afonso pegou a caixa, a usou como escudo antiabraços e fez como um check-list de despedidas, tentando ser simpático:
– Bom pessoal, chegou a minha vez.
Para a secretária que chora com som:
– Calma, Dona Creuza, mundo do trabalho é isso também.
Para Carlos e Zé Pedro, os colegas que previam ali seus próprios futuros:
– Valeu pessoal, deixei os últimos relatórios de análises na pasta REL-AMB2017.
Para o supervisor:
– Tudo pronto.
Caminhou sem pensamentos com a caixa no colo, a respiração descompassada, o supervisor ao lado. Última viagem.
A sonda fez um trabalho valioso, ajustou seu rumo a fim de sobrevoar um ambiente inóspito, aproveitou ocasiões arriscadas para explorar o espaço, auxiliou na descoberta de grandes questões que assolavam o planeta. Mesmo assim, neste ano, ela se desintegrou na atmosfera de Saturno.
Pararam em frente ao imponente prédio do RH, mudos, não havia o que ser dito. Afonso observou a árvore plantada quando completou dez anos de empresa, tinha uma copa larga e fornecia sombra ao estacionamento daquele gigante construído às custas das formigas operárias como ele. Olhou as horas no relógio de pulso, prêmio dos quinze anos de empresa – visor rachado. A mulher, o filho, explicações, dívidas. “Não haverá vinte anos.” Poderiam mudar de cidade, poderia trabalhar para o concorrente. Tudo vago. Tossiu. Poderia se matar.
A nave Cassini chega ao final de sua viagem num suicídio programado.
Libertou uma das mãos suadas. Apertou a mão mole do supervisor.
– Boa sorte, Afonso.
“Vá para a puta que pariu, Cardoso”, pensou.
– Obrigado.
Foi em direção ao carro, queria passar na farmácia, comprar simeticona. Ligou o carro, sentindo-se estranho, acelerou, mão no peito, bateu no prédio titânico do RH. A autópsia indicou infarto fulminante.
P.S.: No dia 15/9/2017, a sonda Cassini chegou ao ponto mais próximo de Saturno numa entrada autodestrutiva. O último sinal da missão foi recebido às 8h55, horário em Brasília. A Nasa batizou o evento de ‘grand finale’.
Showwwww!!!! Padrão: entreter!!! 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼
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Obrigada, querida! Leitora amiga e amiga leitora ❤
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Grande narrativa minha amiga componde outra vez superou de novo minha expectativa. Na próxima já venho com ela mais alta . Muito bom!!!! Parabéns 😘
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Que medo, Kleber! kkkk Obrigada pela leitura. Um abraço 🙂
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