O Funeral

 

O vi ao longe, uma figura preta no centro do gramado verde. Gritei seu nome uma, duas, três vezes e não saiu do lugar, me olhava cheio de culpa. Ele está ficando velho, refleti triste, mas aquela ausência atípica de movimento me pareceu mais do que isso, não era só a idade pesando sobre seus ossos, nem a gordura que se instalou sobre o corpo musculoso, ele só costumava fugir de mim quando mencionava a palavra banho e nem em pensamento a havia pronunciado.

Me aproximei, ele deu dois passos pequenos em minha direção, hesitante como se estivesse com o freio de mão puxado e de um jeito muito diferente daqueles ágeis pulos dos velhos tempos. Já muito próxima, vi primeiro uma gota, depois duas, tingindo a grama verde de um vermelho vivo. Pingavam de suas orelhas como uma torneira mal fechada. Os olhos sempre brilhantes estavam opacos. Atrás dele, um filhote de quati, a longa cauda rajada como uma extensão do corpo. Os olhos do bicho estavam abertos, eram olhos inofensivos, mas a vida já o havia abandonado, apesar do calor da morte recente.

Houve uma luta entre aqueles dois animais e por ironia, quem venceu foi o mais domesticado deles, o sempre dócil, obediente e carinhoso Lampeão. Se por um lado senti alívio, por outro fiquei desolada. Por que diabos esse filhote de quati foi se meter nesse lugar dominado por cães?

Analisei os dentes do bichinho, muito afiados e presos a uma gengiva branca. As garras eram fortes, pretas. Tanto presa quanto predador têm patas parecidas, pensei. A marca da luta estava no pescoço, onde o sangue banhava o pêlo grosseiro. Eu precisava dar um destino ao corpo que em breve começaria a feder. Era um corpo tão complexo, tão genialmente projetado, anos de evolução para chegarmos nisso, prestes a virar carniça.

Mas as crianças acompanhavam tudo, entre aflitas e atônitas diante do sangue e da morte estampada no quintal e praticada justamente por nosso mais fiel companheiro.

A pequena dava voltas em torno do bicho, se acocorando até quase encostar no cadáver, esticando o pescoço para não perder nenhum detalhe. Mamãe, ele não morreu, os olhos estão abertos! Por que ele morreu com os olhos abertos? Então ele está vivo! Mamãe, se ele morreu, para onde ele foi? Ela se referia à vida, essa coisa indefinida que dá movimento às coisas. Ele vai se transformar em outra coisa? Ele vai voltar a viver? E a família dele? As perguntas que  fazia  eram as mesmas que tenho me feito desde a primeira vez em que vi um cadáver, e que nunca me senti capaz de responder. Ainda tenho o pudor da morte, mesmo depois de ter visto muitas, ainda me espanto e questiono. Eu assistia à confusão evidente na cabeça daquela menininha de três anos de idade, uma representação da minha própria perplexidade, mas tive que adotar medidas práticas.

Filho, busca aquela pá, por favor? E lá foi ele, com suas botas azuis, muito solícito, depois voltou arrastando a enxada, como um homem velho que sabe estar diante do mistério. A morte é tão sem resposta que em volta daquele bicho, nós três éramos apenas seres humanos sem idade ou relação de parentesco.  

Cavei um buraco do tamanho do bicho, o segurei nos braços, pude sentir o cheiro forte daquela criatura selvagem que errou o caminho ao entrar no meu quintal. O coloquei em posição fetal, como quem devolve algo a seu lugar de origem. Joguei terra por cima enquanto as crianças me indagavam o porquê de se enterrar as coisas. É, depois que morremos somos apenas coisas, um monte de coisas que já não fazem o menor sentido. Para tentar honrar aquela vida, as crianças buscaram flores, as pedras bonitas que encontraram. Fizeram isso sem que eu pedisse e sem que jamais tenham participado de um velório e um enterro informais. Deve ser algo ancestral, pensei.

A tristeza pairava sobre nós, como se o sol nem brilhasse, apesar de estar ali e arder, queimando nossos ombros expostos, era um sol sem alegria. Após o sepultamento  seguimos nossa programação matinal, mas por todo lado havia indícios do assombro. Sobre o chão, as pedras, a grama e a sujeira, gotas de sangue desenhavam círculos vermelhos com bordas perfeitas. Numa gota de sangue um animal inteiro. O perfume de uma vida que se foi, marcado no tempo, naquelas retinas tão vivas e hipnotizadas. Eles faziam cara de dor quando olhavam para a orelha rasgada de nosso cão.

Coube a mim limpar, medicar e cuidar de Lampeão, o que fiz com carinho, enquanto o repreendia por agir como um cachorro.

Já no fim do dia, se rende e deita de barriga para cima para que o acaricie e medique ou então para demonstrar que comigo é inofensivo como sempre foi. Seus olhos ainda cheios daquele acontecimento, narravam a luta, a dor, o inexplicável instinto.  Talvez afinal, toda a culpa que acreditei ter visto ali, fosse apenas minha.

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13 comentários sobre “O Funeral

  1. Uma descrição sensível e forte de um fato que nos causou comoção e remorso , afinal, nos estamos no lugar outrora ocupado por eles. Parabéns Mel.

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  2. Parabéns pela sensibilidade perante aos mistérios dessa complexidade chamada vida! Olhando a todos os envolvidos com amor…. pois todos temos importância, irracionais ou não, somos só uma particula perante todo o Universo!

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  3. Sensível e ao mesmo tempo tão forte. Um tema que me intriga e que sinceramente tenho dificuldade de lidar. Fiquei imaginando seus filhos, interessante a percepção das crianças.
    “É, depois que morremos somos apenas coisas, um monte de coisas que já não fazem o menor sentido.” Perfeito! Parabéns!

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  4. É, diante da morte somos tão indefesos… Fluindo vida, efêmeros e curiosos por esse mistério que, mesmo impalpável, é tão sensível e convincente…
    O que nos faz experienciar nossa natureza e a natureza das coisas e acreditar que o que sentimos é real?
    O que vemos, tocamos, saboreamos… tudo o que pode desaparecer junto com aquele suspiro que chamamos de vida…
    Os questionamentos da criança que propõe respostas, nessa nossa criativa maneira de tentar descobrir o sentido das coisas, as razões da vida e da morte…
    O confronto entre aquele que seguirá vivo e aquele que se entrega em sua batalha final…
    Adorei o modo como traduziste em palavras e imprimiste tanta personalidade a cada um que participou dessa experiência.
    Parabéns, Mel!
    Sucesso!!!

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