O casamento, o Fusca e a quenga

Era minha Mira, nem um pouco Alva, mais azeviche que noite de lua nova. O amor expandiu meus desejos e eu só pensava em dividir com ela metros quadrados e espaços vastos que não se delimitam.

O fusca azul conduzia nosso amor pelas ruas da cidade, praias desertas ou badaladas e todos os lugares que coubessem em nosso pequeno ordenado. Misturado ao cheiro que todo fusca tem estava o odor leve da cannabis e o perfume dos cabelos de Miralva. Procurava sempre chegar antes do horário combinado nos encontros para que seus cabelos ainda úmidos deixassem mais tempo o perfume incrustado em cada poro do Fusca.

Tinha um gênio forte a minha musa e um carinho que enchia meu coração de ternura e minhas calças de malícia. Miralva queria se casar na Igreja, pra provar ao pai que o amor não era leviano, mas divino e abençoado por Deus. Eu só pensava no financiamento da casinha meia boca que tínhamos comprado em prestações mensais infinitas e na manutenção do fusca pro trabalho e pro lazer.

Fora o ciúme da morena, esse era o maior motivo das nossas brigas. “Vende essa porcaria de fusca” gritava depois de tentar me convencer nos seus braços enquanto eu, amuado, nem respondia. Era impensável. Não seria considerado de forma alguma. No intervalo entre cada briga e a ansiada reconciliação, o fusca me levava pra lugares muito menos diletos, e andávamos os dois pela madrugada, vingados da tirania da minha menina.

Numa dessas brigas Miralva me solapou com palavrões que eu nem sonhava existir, “Não queria ver fumaça de mim”, “Nem pintado de ouro”, berrava aos prantos. Saí rapidamente por conselho da bebedeira que me fez imaginar um pedaço de pau arremessado na minha cabeça dura.

Fomos eu e o fusca chorar as dores no Bar de Dizo e depois no colo das putas do Brega de Maria Bitela. Mal sentei e pedi uma cerveja, uma putinha se encostou, eu a afastei como se tivesse espinho. Só queria continuar meu porre imaginando que estava ali ferindo a petulância de Miralva.

Maria Bitela serviu a cerveja e me perguntou do fusca. Disse “É meu” olhando pra ela de cima a baixo. “Pois me venda!” ordenou a cafetina colocando a cerveja no meu copo. “Não está à venda”, disse enquanto pensava comigo que diabos essas mulheres queriam com meu fusca naquela noite. Tinha brigado com Miralva pelo fusca e ali tentando relaxar, a quenga insistindo em comprá-lo. “Faça seu preço que ainda te dou um agrado”, teimava a libertina. Disse “Não tem preço” e não fosse a Brahma gelada no copo, eu teria ido embora.

A puta mestra só andava de shortinho exibindo as coxas roliças e meia polpa de bunda. Naquele dia deu de vestir uma saia longa dessas de cigana. Encostou o rosto no vidro do meu carro acompanhada de um viadinho e de um cliente que sempre dava uma beliscada na bunda carnuda virada pra mim enquanto ela espiava tudo dentro. Não levantei da mesa pra não dar esperança à quenga de que ela compraria meu Fusquinha tão bem cuidado.

Miralva me deixara, dessa vez de verdade, eu só tinha o perfume de seus cabelos cacheados no carro. Bitela sabia que Miralva queria se casar na Igreja, fazer festa e essas firulas imbecis que são palco das primeiras brigas odiosas de um casal divergente e até mesmo dos consensuais. Acendi um cigarro enquanto aliviado vi Maria se afastar do Fusca azul. Tocava “Vai caindo uma lágrima” de Jerry Adriani enquanto eu represava todas as minhas na garganta, em nó.

A fumaça do cigarro parou no nó da garganta e já saiu em tossidas frenéticas quando vejo Maria Bitela carregando com a saia suspensa até o peito, mostrando a calcinha de renda rosa, bolos de notas enroladas em borracha de dinheiro. Moedas num saco também foram despejadas em cima da mesa. Vermelho como lagosta, sem poder falar, levantei minhas mãos perguntando o que era aquilo? O viadinho que vinha logo atrás deu pequenos tapas nas minhas costas e disse como se já fosse vencido “Ela tá te pagando muito mais do que seu Fusca vale, meu bem.”

O cliente que beliscava Maria Bitela, tomava seu uísque de segunda enquanto a via determinada a pagar pelo meu carro que, abatido o perfume de Miralva, valia um terço a menos que o que a quenga me pagava. Devia ter dinheiro dele ali no meio, até meu. Dinheiro de sexo promíscuo, de bebida barata. Meu fusca movido a amor shakespeariano ia movimentar histórias que deixaria o Marquês de Sade enrubescido.

Desgraçada, me pegou num dia difícil. Ainda ouvindo Jerry, fui até o carro, sorvi pela última vez aquele amálgama de perfumes, peguei alguns poucos objetos que estavam ali, a caixinha onde dispunha meus baseados, isqueiro, as chaves de casa e o chaveiro do Vasco que ornava o retrovisor. Olhei pra trás, tive vontade de beijar o fusca, senti vergonha, pedi uma mochila emprestada. Recusei a carona, preferi me arriscar, fui andando pra casa. Precisava do vento levando meu apego ao Fusca e à Miralva, que já não eram meus.

Três dias depois, sentindo uma saudade sufocante, fui até Miralva, o Fusca foi trocado por seu sonho. Com todo aquele furor da minha morena, só que agora de alegria, ganhei beijos que nenhum marmanjo ganharia no meu Fusca, mesmo se enroscado em duas libertinas. Miralva nunca soube que o sonho do casamento sob os olhos de Deus foi conseguido pela insistência de uma puta que sonhava ter um fusca azul royal, com para-choques e calotas cromados, que levasse prazer a delivery.

Poliana

 

Poli Trindade, que adora rabiscar papel quando os papéis desfrutados nessa vida lhe dão uma trégua!!

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