Experiência: Desamparo

Não consigo lembrar dos olhos da anestesista que me abandonou na sala de parto. Talvez porque as lentes de seus óculos refletissem a luz branca daquele hospital, mascarando sua humanidade. O ambiente era tão hostil, eu sentia tanta dor e estava tão vulnerável com aquela camisola, sem a mínima chance de fuga. Meus pedidos, todos negados. Peço que chamem meu companheiro, preciso que ele esteja aqui comigo, me respondem que não é permitido. Estou tão sozinha nesse lugar. Ela faz aquelas perguntas e quer que eu responda de imediato. Não consigo responder, ela perde a paciência, me repreende. Preciso de água, quero que essa dor passe logo, quero caminhar, me agachar, quero parir longe daqui. Por que mesmo vim parar nesse hospital? Tudo é tão diferente do que planejei. Queria uma caverna, fogo, água quente sobre minhas costas, minha família. Meu corpo quer expelir uma criança e vai fazer isso nesse ambiente estéril com essa médica sem compaixão. Peço água pela segunda vez, ela diz que qualquer um sabe que não se pode tomar água antes da anestesia. Eu não sei, não sou médica, digo. Ela sai da sala e não volta mais. Já são onze e meia da noite de sexta feira. Deixa-me ali com uma enfermeira que segura minhas mãos. Serei grata para sempre àquela mulher. O obstetra sumiu, foi procurar outra anestesista. Eu grito, preciso gritar, quando grito a dor diminui. Respiro, respiro ofegante e grito. É o grito de um animal, ele sai das minhas entranhas, ele quer sair junto com a criança. O grito é meu e dela, rompendo todas as barreiras para nascer. Fica quietinha, não grita, vai assustar as pessoas na sala de espera, alguém me diz com firmeza. Meu suor é gelado, sinto calor e frio. Tenho vontade de morder, de chutar, sinto uma raiva explodindo contra essa opressão. Por favor, a senhora precisa deitar na maca. Não posso conceber meu corpo deitado nesse momento, ele deseja movimento, o ventre contrai muito, uma força sobrenatural o comprime. Sinto que o poder de parir é meu, me concentro nele a despeito de todo temor. O obstetra reaparece com outra anestesista. Antes de me cumprimentar, esta percebe que a enfermeira usa um top preto por baixo do avental e a recrimina várias vezes por isso. A moça se desculpa e começa a chorar ao sentir-se humilhada, não tiro sua razão. Me sinto igualmente aviltada pela cena desnecessária.  Enquanto dura a contração peço a morte, peço à Deus, peço força. Luto pela minha filha e por mim, todos me parecem inimigos naquela sala, todos querem que eu faça o que meu corpo diz para eu não fazer. Quando relaxo, consigo respirar e pensar no meu próximo passo, mas a contração volta e eu esqueço. A bolsa rompeu, o sangue escorre nas minhas coxas brancas, tingindo a camisola e o chão. Agacho-me no canto da sala como um animal acuado, ela está vindo, está chegando, posso sentir sua cabeça passando pelo meu quadril, faço muita força e ela sai. Levam meu corpo para a maca e cortam o cordão umbilical. Vejo minha filha pela primeira vez. Os cabelos tão pretos e diferentes dos meus, o rostinho rosa rebentando num choro alto e puro. Agora é ela quem grita, eu sou a glória. Seguro seu corpo quente e úmido junto a mim, ainda estamos sujas de sangue e da água espessa da placenta. Lágrimas escorrem abundantes em minha face incrédula. Meu companheiro entra, nunca ansiei tanto por segurar sua mão e olhar nos seus olhos. Olhos familiares. Sobrevivi, sobrevivemos.  

No dia seguinte o obstetra vem me visitar. Catarina dorme a meu lado, o sol enchendo o quarto abençoa seu rosto que emana a serenidade dos inocentes. Ele pergunta como estou, digo que agora estou bem, apesar de chocada com a atitude de ambas as anestesistas. Digo que senti muita dor e medo. Aparentemente ele não achou a atitude das doutoras tão despropositada e cruel quanto eu achei. Me assegura que não foi nada demais e que nós mulheres fazemos muito drama.

Naquele dia foram realizados trinta partos no mesmo hospital, dos quais apenas o meu foi “normal” contra a minha vontade. Os demais foram cesarianas marcadas com antecedência, antes do início do trabalho de parto.

Descubro que não sou a única mulher que passou por violências desse tipo, muitas outras sofrem coisas ainda piores do que eu sofri. O nome deste tipo de agressão se chama “violência obstétrica” e é pouco denunciada por motivos óbvios: falta de provas e a justificativa de que são procedimentos padronizados do hospital. A lei, entretanto opera a favor das parturientes que têm o direito de ter um acompanhante junto de si durante todo o parto, assim como tem direito a tomar água e a movimentar-se livremente.

Caso você deseje um parto humanizado, não poupe esforços em pesquisas. Conheça o hospital, o procedimento e o máximo de detalhes possíveis. Faça um plano de parto, que nada mais é do que uma carta ao hospital, declarando como você deseja ser tratada. Conheça o médico com antecedência e não deixe tudo nas mãos do destino, como eu fiz.

Se você já sofreu esse tipo de violência, denuncie. Eu ainda não o fiz porque os fatos relatados não constam do prontuário médico do hospital e não tive lucidez suficiente para anotar o nome da única enfermeira que talvez pudesse prestar seu depoimento.

Sou advogada e ativista desta causa e estou à disposição para ajudar e prestar maiores esclarecimentos.

Procure:

http://www.artemis.org.br/violencia-obstetrica

http://www.partodoprincipio.com.br/faq-violncia-obsttrica

 

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17 comentários sobre “Experiência: Desamparo

  1. Nossa! Estou chocada!
    Não sabia que existiam pessoas com atitudes tão desumanas em um momento/ambiente no qual mais se precisa de pessoalidade!
    Para mim serve como um alerta, para que quando chegue a minha vez eu esteja informada e precavida.
    Imagino o seu desespero, eu ficaria em pânico total!
    É uma pena que uma mãe no seu momento de plenitude tenha que enfrentar isso por ser algo “corriqueiro” para os profissionais.

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    • Se quiser falar mais sobre, estou a disposição! Acho que quando chegar seu momento é interessante pesquisar muito mesmo, conhecer hospital, médicos, equipe! beijo

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  2. Apesar de dramático, um texto com passagens muito bonitas. Mel, pude sentir sua dor e nunca imaginei que isso existisse. Meus partos foram cesárias, porém o mesmo sofrimento do parto natural. Na Espanha (onde tive minhas filhas), o parto só é cesária se realmente não existir outra saída. Moral da história: primeira filha 13 horas de trabalho de parto e a segunda 8 horas. Afe! Ainda assim, meu marido esteve ao meu lado. Legal você colocar para fora sua experiência. Parabéns!

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    • Que loucura, imagine treze horas de trabalho de parto pra depois fazer cesárea! Então, acho que falar cura e de quebra ainda pode ajudar a evitar que isso aconteça com mais mulheres desprevenidas! Grata pela leitura amada!

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  3. Meu olhos estão cheios de lágrimas por você e por todas as outras mulheres que passaram por isso em um dos momentos mais difíceis de suas vidas.
    Espero que essa brutalidade termine em algum momento.
    Beijos com carinho.

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    • É prima, falta muita sensibilidade no mundo! Obrigada pela leitura e feedback. Fique a vontade pra compartilhar, quem sabe pode ajudar mais mulheres a não passar pelo que passei.beijo grande!

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  4. Sem palavras depois de ler esse texto. Nunca imaginei que você tivesse passado por isso Mel. Infelizmente devem existir muitos casos assim, e nenhuma providência é tomada. Parabéns pelas palavras e detalhes, consegui imaginar cada momento do acontecido!

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